sexta-feira, 30 de abril de 2010

Carta à imaginação

Sempre que me imagino tenho uma imagem desfocada da realidade. Sou real, mas quero ser mais, quero ser o ar que respiras, entrar em ti de uma forma e sair de uma outra totalmente diferente. Imagino-me feliz com todas as incoerências e mal-entendidos resolvidos. Sonho com o teu sorriso único, bem ao lado do meu; o nosso belo cartão de visita. Mas sei que não voltarei a ser feliz como fui, quando ainda respirávamos o mesmo ar. Hoje bastava-me apenas passar por ti como uma brisa que te acaricia o rosto.
Deito-me feliz, como um dia já fui, na esperança de contemplar o único calor que me faz única, o calor da tua respiração nos meus sonhos. Acordo triste; voltei à realidade crua, consistente, que não muda porque quem cá mora não quer amar, vive em smogs intensos e desconhece como se é feliz quando na vida passa por nós uma lufada de ar fresco. Ao longo do dia entretenho-me com o mundo, reciprocamente o mundo entretém-se comigo. Faço escolhas e volto em esquinas nas quais não me deixam fazer inversão de marcha, e só em minutos como estes, em que tenho um tempinho é que consigo reorganizar as ideias. Só imaginando as ideias conceptuais conciliadas com as virtuais é que descubro que até podia voltar a encontrar-te. Entretanto esses minutos passam e ambas as ideias dissipam-se; volto a ser o que não quero ser, mas que tem que ser.
O vento voltou, passou na minha cara e volto a imaginar que te toco no rosto, sei que sorririas, adoras um toque leve pelo rosto, mesmo que seja a brisa de um dia de primavera ensolarado. Não sei se terias a mesma reacção se ainda fosse a minha mão, mas acho que não! Não me reconheces mais, fui o que era, não o que sou. A vida é incoerente, mas comigo foi incoerente demais. Devia de haver uma norma que estabelecesse até que nível uma vida normal pode ser incoerente. A minha já teria ultrapassado em largos milhares esse nível, por isso acho que já vivo mais no mundo surreal - na minha imaginação e na tua recordação. Podes ainda respirar o mesmo ar que eu, mas não vou ser eu que te tocarei e não vais decerto ser tu a fazer-me sorrir como outrora. Uma vez disseram-me que mais vale viver pouco tempo bem aproveitado, feliz, com afecto, amor verdadeiro, e com pessoas que gostam de nós de verdade, do que uma vida longa e triste, sem condições, sem amor nem afecto. É com base nesta frase que acho que já devo ter ingressado numa nova vida, morri, regressei na mesma pessoa e com a mesma vida, mas apenas com a diferença que já tive uma vida real em que fui feliz e agora entrei num mundo surreal em que a minha vida passa apenas pelos sonhos da minha outra vida.
Sei que se lesses tudo isto dirias algo do género: "Luta pela tua felicidade, tens muita gente que pode tornar esse teu desejo realidade." Eu ripostaria algo do género: "Tal como tu o fizeste, claro está!" E fizeste muito bem, viver a realidade tal como é e habituarmos a ela é muito mais fácil, não é? Também sei que não lutaste, apenas acomodaste-te, e eu... eu não tenho estofo para isso. Ou pelo menos penso não ter. Mas muito provavelmente vou acabar por me habituar porque de certo modo já vivo numa realidade paralela; uma onde tenho que viver porque sim e porque tem que ser, e noutra onde sou feliz e até luto por ti, mas que não passam de meros sonhos e quimeras.
Talvez um dia a realidade deixe de ser incoerente e o ar deixe de ser a única coisa que temos em comum. Até lá basta-me apenas imaginar!